sábado, 8 de março de 2008

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 33 (Cont.)

Capítulo 9. À BEIRA DA ÁGUA DETEVE-SE

Eram pensamentos que se soltavam, a cada dia mais complexos e elaborados, que progrediam desde formas intrincadamente misteriosas na sua mente para suspiros audíveis cada vez mais inteligíveis e claros, até os conseguir verbalizar totalmente em conjuntos de palavras com sentido.
Sem o saber, inconscientemente o trabalho de todos os autores que John a fazia ler refinava-lhe lentamente o seu próprio pensamento e o seu próprio discurso, contaminando-se um ao outro num ciclo vicioso potencialmente significativo. Emily estava em processo de aculturação, embora nem sequer suspeitasse.
À medida que os dias passavam, as palavras que ia soltando deixavam de ser apenas proteínas individuais numa sopa primordial de emoções e aglutinavam-se em cadeias cada vez mais extensas, trocavam de lugar, recombinavam-se originalmente e davam à luz organismos de frases completas que cada vez correspondiam mais e melhor às suas emoções, sentimentos, pensamentos e reflexões.
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as palavras dele são as palavras que parecem preencher tudo
a tua voz penetra-me o espírito e viaja dentro de mim, serpenteando no meu interior e alojando-se num determinado sítio onde me parece que sempre pertenceu
falas pouco, mas dizes tudo o que precisa ser dito
as tuas palavras são uma chave que abre as palavras que eu entendo de outros e as solta na sua forma certa, que corresponde exactamente ao conteúdo
Olha-me vê sente-me olha de novo
quero que me vejas
gosto que me vejas sem me veres
gosto que me vejas no escuro dá-me a tua escuridão

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E o seu rosto cada vez se tornava mais agradável, em comparação com o de Hesse, com o de qualquer outro, e a sua voz embalava-a antes de adormecer.
Sentia-se perdida e sozinha.
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E agora ali estava ele, pela primeira vez amaldiçoando-se por ter carregado no acelerador. Realizando um exame de consciência absurdo, um ano após a tragédia, como se isso fosse capaz de o ajudar em alguma coisa. Porque, na realidade, pensar dessa forma só iria conduzi-lo num exercício circular vicioso sem sentido nenhum. Se não tivesse tido o acidente, nunca teria conhecido Emily e não estaria a desejar poder observar as suas reacções. E depois começou a pensar em tolices ainda maiores, como a possibilidade de nunca a ter conhecido ou a hipótese de a poder ter conhecido de qualquer maneira, mesmo que estivesse em perfeitas condições de saúde. E, finalmente, claro, o mais absurdo de todos, e que podia ir fazer companhia ao do outro dia, quando pensara que ela fora enviada pelo espírito dos seus pais, pensou se não teria tido o acidente para poder conhecê-la. E nessa altura quase enlouquecia com o absurdo que aquela espécie de pensamento provocava na sua mente objectiva e científica.
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"Havia apenas um ardil e era o Artigo 22, o qual especificava que a preocupação de um homem pela sua própria segurança perante perigos reais e imediatos constituía o resultado do funcionamento de uma mente racional. Orr era louco e podia ser dado por incapaz. Bastava-lhe pedir, e a partir do momento em que o fizesse deixaria de ser louco e teria de participar em novas missões. Seria louco se participasse em novas missões e mentalmente são se não o fizesse, mas neste último caso teria de voltar a voar. Se o fizesse, seria louco e não teria de o fazer, mas se não quisesse, estaria em plena posse das faculdades mentais e deveria fazê-lo. Yossarian sentia-se profundamente impressionado com a notável simplicidade daquela cláusula do Artigo 22 e emitiu um silvo de respeito.
- É um bom ardil esse Artigo Vinte e Dois.
- Dos melhores que existem - admitiu o Dr. Daneeka." (44)
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Patético, repetia vezes e vezes sem conta, lembrando-se dos pobres coitados que tentam justificar todos os infortúnios das suas vidas com a desculpa de que tudo tem a sua razão de ser no intrincado desenrolar da roda do destino. E amaldiçoava-se, já não por ter carregado no acelerador, mas por se estar a deixar cair precisamente no mesmo tipo de mentalidade mesquinha que criticava nela e em todos os da sua classe.

E subitamente, convencido de que a rapariga estava realmente a fazer pouco dele e que provavelmente andava a dormir com a faculdade inteira, um dia, sem mais nem menos

(44) Catch 22 - Joseph Heller

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