sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

MURMÚRIOS DE LISBOA XIX

Quero as Minhas Asas!
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Sereia - Pormenor de Fonte - Praça do Rossio
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Ela tinha perdido as asas.
Não sei se as tinha perdido porque se esquecera delas em algum lugar, se lhas haviam roubado ou se lhas tinham sido confiscadas por ordens superiores, mas suspeito que tenha sido por este último motivo.
É que os olhos dela estiveram durante a viagem inteira até ao aeroporto no estado da mais completa surpresa e descrédito que é possível imaginar.

Era bonita, aquele tipo de beleza grunge onde os criadores de moda como Calvin Klein foram buscar inspiração há uns anos atrás. Tinha um rosto oval de curvas delicadas, emoldurado por uma cabeleira castanha escura lisa e escadeada que lhe chegava ao princípio das costas. As sobrancelhas eram finas e desenhadas por uma profissional e tudo o resto – a boca, o nariz e o queixo ligeiramente arrebitado – era pequeno, à excepção dos olhos castanhos, enormes e espantados. A única presença de maquilhagem naquele rosto de vinte e poucos anos era o risco de eyeliner preto nas pálpebras inferiores e as olheiras negras, claro, que nem toda a maquilhagem do mundo conseguiria disfarçar.
Trazia um top preto justo por baixo de um casaco de cabedal preto curto, umas calças de ganga justas cinzentas e umas botas pretas de salto alto. Era baixinha e bem feitinha, presumo que agradasse a qualquer homem com olhos na cara (infelizmente, não tinha o meu irmão comigo para lhe perguntar se estava aprovada ou não – ele costuma ser o meu barómetro).

Tinha perdido as suas preciosas asas, negras e enormes, que eram o seu orgulho, que cuidava tão bem como do cabelo, mantendo-as sedosas e leves, escovando-as 100 vezes todas as noites. E agora, por uma transgressãozinha, uma mera idiotice, tinham-lhas confiscado, talvez para sempre, não sabia. Não podia sequer acreditar no que lhe estava a acontecer. Uma maldita transgressãozinha que nem sequer se podia chamar isso. Era inconcebível! E os olhos mantinham-se desmesurados e incrédulos, enquanto agarrava junto ao corpo a mala de plástico branco e fixava o olhar no horizonte das suas amadas asas perdidas.

Nem sequer reparou no professor de história tímido que se enfiou no banco ao seu lado, perto da janela e mergulhou imediatamente na leitura do jornal. Ouvia música, o professor e era daqueles jovens professores idealistas e atraentes, mas que vivem num mundo interior privado e protegido de invasões. O típico rato de biblioteca, de cabelo cortado quase à escovinha, semblante sério e circunspecto, blaser escuro e calças de ganga azuis desbotadas. Quando viu que eu o observava, o professor baixou imediatamente os olhos e daí a nada estava a arrumar as coisas, para sair perto do liceu. Claro que sorri. Foi mais forte do que eu. Enternecem-me homens tímidos. Porque são tão raros.

Mas ela nem sequer reparou quando ele voltou a passar por si. Qual professor de história, qual carapuça! Eu quero as minhas asas de volta!
Saiu no aeroporto, claro. Ia apresentar reclamação, averiguar o que se passava, pedir uma revisão de provas, rogar para falar com alguém superior, eu sei lá, chorar baba e ranho, se fosse preciso.
Era perfeitamente inconcebível que lhe tivessem confiscado as suas asas!

2 comentários:

Dry-Martini disse...

Um dos grandes problemas do mundo é haver tantas pessoas sem asas.
Lamento profundamente.

Andrómeda disse...

Meu caro, a minha intenção não era que o texto deixasse tamanha amargura, especialmente em si :)

Mas concordo. Em contrapartida, quando se encontram pessoas com asas, são tão maravilhosas que valem por cada duas sem asas, não acha? :)