segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

MURMÚRIOS DE LISBOA XVI

Anjinhos Mal Comportados

Fonte Praça do Rossio

É mais que certo que o aeroporto é um portal. Querem ver? … Tenham paciência, porque a história é comprida.

Os dois entraram algumas paragens antes. Não tinham mais de 15 anos. Duas avezinhas ainda a largar penugem à sua passagem. Dirigiram-se imediatamente para junto da porta traseira e aí se encostaram rindo de uma qualquer asneira cometida em conjunto. O mais baixo e franzino era o mais destemido. Tinha o cabelo loiro espigado e uns olhos pequenos, verdes e desconfiados. Trazia um barrete cinzento enterrado quase até às sobrancelhas, uma camisola também cinzenta, umas calças azuis e uns ténis pretos.
À primeira vista teria todo o aspecto de ser o anjo mau do par mas, como todos sabemos, as aparências costumam iludir.
A raiva que o cobria dos pés à cabeça como um manto invisível mas poderoso, deixava-se vislumbrar em pequenos pormenores que não eram percepcionados conscientemente, mas que se manifestavam de forma visceral em quem o observasse. Encolhi-me e afastei o olhar. Este anjo estava contra o mundo e ainda por cima naquela idade perigosa em que julga que o mundo só está contra ele, porque só o vê a ele.
O outro era, aparentemente, o anjo bom do par, apesar de ser mais alto, mais moreno, mais escuro e mais dissimulado por baixo dum capuz azul que lhe escondia a face. À primeira vista poderia ser um anjo que ainda não escolhera o seu lado da batalha e que fingia ser mau, para não parecer mal. Um daqueles anjos cinzentos. Nunca se saberá. Até porque se assim fosse, pelos vistos tinham-se enganado na cor das roupas no camarim. Mas sabemos como nestas idades se gosta de trocar tudo, até a segunda pele.

Foi então que o velho sentado atrás de mim se passou dos carretos e o seguinte diálogo teve lugar:
“Está a fumar … Você está a fumar?!”
O anjo mau (que vestia de cinzento e não sabemos ainda se era realmente o mau da fita) trazia metade dum cigarro entalado entre o indicador e o polegar da mão direita (porque é assim que os meninos maus fumam), enquanto a outra repousava enfiada no bolso esquerdo das calças.
“Tou!”, encolher de ombros altamente provocatório.
“Faça favor de apagar o cigarro!”, berrou o velho.
“Porquê?”, olhar extremamente desafiador.
“Aqui dentro não se fuma! Dentro do autocarro é proibido fumar!”, o velho estava a perder todas as estribeiras.
Entretanto, a senhora que estava sentada lá atrás começou a abanar-se com a revista que segurava nas mãos e desabafou, enquanto soprava, solidária com o velho:
“Que fumarada! Aqui dentro é proibido fumar. Senão estamos todos aqui a levar com isto. Ai….”, e levantou-se para abrir a janela. Ajudei-a. Ela agradeceu, distraída. O velho continuou a insistir.
O senhor gordo sentado ao lado da senhora do abanico exclamou, com um encolher de ombros:
”Eu já sabia. Eu já estava a ver que isto ia acontecer …”
O anjo mau respondeu torto ao velho e o velho desta vez exaltou-se a sério. Na realidade, ficámos todos a temer pela sua saúde:
“Respeitinho! Os teus pais não te dão educação? Olha que eu tenho idade para ser teu avô!!” e a palavra “avô” foi proferida a bold e caps log.
O senhor gordo chateou-se com tudo o que ele já estava mesmo a ver que ia acontecer e vociferou, talvez preocupado com a possibilidade de o velho ter ali mesmo uma apoplexia das sérias:
“Vá … Parem lá com isso.”
O anjo cinzento ria e o anjo mau perdeu-se na escuridão da sua raiva. Os olhos encolheram-se ainda mais, enquanto o corpo frágil avançava para o confronto, mas pregado ao mesmo chão onde se plantara.
“Eu sei. Por isso é que não lhe faltei ao respeito.”
E depois, numa voz perdida, disse apenas:
“E veja lá como é que fala do meu pai. Ele já morreu.”, virou-se para a porta, enfiou o pescoço nos ombros e abanou a cabeça, como se estivesse à espera que um qualquer realizador imaginário gritasse “Corta!”
Podia ser verdade. Ou podia ser mentira. Nunca se saberá.
O velho levantou-se e avançou disparado lá para a frente.
A senhora continuou a abanar-se com a revista. O senhor gordo soltou mais uns impropérios.
O anjo mau atirou a beata lá para fora e sentaram-se os dois atrás de mim, rindo descaradamente.
Entretanto o motorista, certamente avisado pelo velho, berrou lá para trás:
“Quem é que está aí a fumar?”
O anjo cinzento respondeu imediatamente: “Sou eu!”, numa atitude protectora do seu par, como se implicitamente estivesse a dizer “Epá, ele já teve a dose dele, agora é comigo.”
dlkjldjjd

Foi nessa altura que o autocarro, em vez de seguir em frente, deu meia volta e regressou … adivinhem onde … às partidas do aeroporto … precisamente para ir buscar reforços, bem se vê.
O senhor gordo, como era seu hábito, vociferou, cruzando os braços:
“Eu já sabia que ele ia fazer isto…”
Momentos depois entrou um anjo-da-guarda fardado de azul escuro. Os anjinhos cheiraram a própria penugem e entreolharam-se, calados e encolhidos, percebendo finalmente que talvez a brincadeira tivesse ido longe demais.
O anjo-da-guarda, que nem sequer era muito alto nem impunha muito mais respeito do que o que a farda lhe conferia, limitou-se a perguntar, observando-os displicentemente:
“Quem é que estava a fumar?”
Não obteve resposta, mas não foi porque quisessem fazer-se de parvos. Foi simplesmente porque estavam demasiado aturdidos para dizerem qualquer coisa e possivelmente até com a ridícula esperança que por um qualquer prodígio da natureza, se tivessem tornado subitamente invisíveis ao anjo-da-guarda.
Portanto, era até escusado a senhora do leque ter dito:
“São eles, mas eu pedi-lhes com educação para pararem e eles pararam …” e a frase foi descaindo lentamente até terminar num murmúrio já maternal e medroso.
Desta vez o senhor gordo não afirmou que já sabia coisa alguma.
O anjo-da-guarda passou por eles e mandou-os saírem e é claro que nem teve que levantar a voz. Limitou-se a seguir em frente, sem sequer olhar para trás.
As avezinhas abandonaram o autocarro e permaneceram no passeio, cabisbaixos, largando penugem a toda a volta, com o ar mais inocente do mundo, ouvindo as admoestações.
O anjo mau encolhera-se de tal forma que foi o anjo cinzento (o tal que estava vestido de escuro) quem procedeu às explicações. Talvez estivesse a desejar que o pai ainda existisse. Ou talvez estivesse agora mais próximo dele do que alguma vez tivesse podido imaginar.
Nunca se saberá.
Até porque decerto que foram enviados por uma temporada para a escola de correcção de anjos mal comportados.
Onde já se viu um anjo a fumar? Estes anjinhos de hoje lembram-se de cada uma …

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