domingo, 6 de janeiro de 2008

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 18 (cont.)

Capítulo 5. CORRESTE POR MINHA CASA DE MADEIRA
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Abriu uma gaveta e retirou um aparelho. E depois a sua voz encheu a sala. Uma voz suave, lenta e hesitante. Emily fez uma careta de horror.
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"E seria Mr Rochester agora feio aos meus olhos? Não, leitor: a gratidão e muitas associações, todas elas agradáveis, tornavam o seu rosto o objecto que mais me agradava observar; a sua presença numa sala era mais alegre do que a lareira mais brilhante. No entanto, não esquecera os seus defeitos; com efeito, não poderia, porque ele encarregava-se de os revelar na minha presença frequentemente. Era orgulhoso, sardónico, duro com a inferioridade de qualquer natureza: na minha alma secreta eu sabia que a sua enorme bondade para mim era equilibrada com severidade injusta para muitos outros. Também era de humores, muitos; mais do que uma vez, quando me mandava chamar para lhe ler, encontrei-o sentado na sua biblioteca sózinho, com a cabeça repousada sobre os braços cruzados; e, quando me fitava, uma sombria, quase maligna carranca enegrecia o seu semblante. Mas eu acreditava que os seus humores, a sua aspereza e os seus anteriores defeitos de moralidade (digo anteriores, porque agora parecia tê-los corrigido) originavam em alguma cruel cruz do destino. Acreditava que ele era naturalmente um homem de melhores tendências, princípios mais elevados e gostos mais puros do que os desenvolvidos pelas circunstâncias, instigados pela educação ou encorajados pelo destino. Achava que nele residiam excelentes materiais; e pensava que presentemente eles se encontravam suspensos, de algum modo corrompidos e confundidos. Não posso negar que me afligia com a sua mágoa, fosse ela qual fosse, e teria oferecido muito para a atenuar.” (27)
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Depois John carregou num botão e o registo mudou. Emily nem queria acreditar. Era a sua voz. Mas era uma voz que ela não reconhecia, de algum modo. Uma voz quente e enriquecida, cheia de pequenas entoações diferentes, que provocava emoções.
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"O espaço e o tempo estão interligados. Não podemos olhar para o espaço sem olhar para o tempo que passou. A luz desloca-se muito rapidamente. Mas o espaço está vazio e as estrelas estão muito afastadas. Distâncias de 75 anos-luz ou inferiores são muito pequenas, em comparação com outras distâncias da astronomia. O Sol dista 30 000 anos-luz do centro da Galáxia da Via Láctea. Da nossa Galáxia até à mais próxima galáxia espiral, a M31, também na constelação de Andrómeda, vão 2 000 000 de anos-luz. Quando a luz que hoje vemos proveniente da M31 partiu em direcção à Terra, não havia seres humanos no nosso planeta, embora os nossos antepassados estivessem a evoluir rapidamente no sentido da nossa forma actual. A distância da Terra até aos quasares mais longínquos é de 8 ou 10 mil milhões de anos-luz. Vemo-los actualmente tal como eram antes de a Terra ser constituída, antes da formação da Via Láctea." (28)
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"É a minha voz …"
"Pode-se orgulhar dela. É uma excelente voz."
"Posso-lhe fazer uma pergunta?"
"Pergunte."
Pigarreou. Depois lembrou-se de um comentário que ele fizera quase no início:
"Pigarrear pode ser sensual na voz da Melanie Grifith, mas na sua parece que engoliu um sapo."
Sorriu.
"Porque é que me contratou se a minha voz era … era …", uma porcaria.
"Uma lástima, sim. Porque há vozes que são lástimas e não há nada a fazer. Sê-lo-ão sempre, mesmo que as tentemos aperfeiçoar. Defeito de fabrico. O meu pai era violinista. Das poucas coisas que me lembro dele é de uma frase que costumava dizer: 'Um bom instrumento pode ser sempre afinado até atingir a precisão total. Um instrumento mal fabricado não vai lá nem com mil afinações. Defeito de fabrico.' Até Deus tem os seus maus dias. No seu caso, ele estava inspirado. "
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Percebia agora que sem se dar conta, durante aqueles dois meses de leituras, John fora afinando não só a sua voz como tudo o resto. Ele mudara a sua maneira de ver o mundo, tornara-a mais requintada, mais segura, mais sintonizada com as suas ambições. Até a sua maneira de vestir se modificara.
Sem reparar, os seus modos e a sua maneira de estar haviam-se moldado àquela casa, onde as pessoas tacteavam o chão de mármore em bicos dos pés e o chá era servido religiosamente às sete e meia com rodelas de limão espetadas em palitos, em chávenas de porcelana inglesa que ela tocava com mil cuidados, tentando pousá-las nos pires tão silenciosamente como ele fazia, mesmo sem ver a distância que separava as duas metades porque esse ritual lhe era tão familiar como para ela era natural respirar.
Só se apercebera da sua mudança quando Steve a viera visitar e olhara para ela com desaprovação:
"Estás diferente."
"Achas?"
"Sim, estás … estranha. Dantes não te vestias assim …"
Mirou-se no espelho. O dinheiro que recebia das leituras permitira-lhe enriquecer o parco guarda-roupa com algumas saias mais atrevidas e um casaco decente e quente de gola de pêlo.
"Não gostas?", piscou os olhos como vira Amanda fazer dezenas de vezes aos professores que se lambuzavam pela sua atenção.
"Emily … este lugar não é teu …"
"Oh! Steve, por favor. Quando é que vais perceber duma vez por todas que este lugar é onde eu quero estar?"
"Até a tua maneira de falar mudou … Caramba, Emily …"
Ao voltar para casa no dia seguinte fora acometida por uma súbita dúvida - um dia aquilo ia eventualmente acabar. Tudo tem um fim. Ou será que iria ler para ele o resto da sua vida?
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(27) Jane Eyre – Charlotte Brontë; (28) Cosmos - Carl Sagan

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