Capítulo 7. MY SIN, MY SOUL
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"Nalguma estante de algum hexágono (pensaram os homens) deve existir um livro que seja a chave e o resumo perfeito de todos os outros: deve haver algum bibliotecário que o tenha estudado e seja análogo a um deus. Na linguagem desta zona hão-de persistir ainda vestígios do culto desse funcionário remoto. Fizeram-se muitas peregrinações à procura d'Ele. Durante um século percorreram em vão os mais diversos rumos. Como localizar o venerado hexágono secreto que o alojava? Alguém propôs um método regressivo: Para localizar o livro A, consultar previamente um livro B que indique o sítio de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim por diante até ao infinito …" (34)
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Finnegans Wake, publicado em 1939, fora a última obra do irlandês James Joyce. O valor do romance como obra literária permanecia matéria controversa ainda agora, do mesmo modo que o fora na época da sua publicação. O próprio Joyce referiu-se-lhe como uma “história do mundo”. Anthony Burgess, autor de “A Laranja Mecânica” descreveu-o como “um dos livros mais interessantes jamais escritos.” Alguns defendiam, porém, a opinião de que o livro não passava de uma partida que Joyce resolvera pregar à comunidade literária. Stanislaus, irmão de Joyce, afirmou que era “ou o resultado do trabalho de um psicopata ou uma grandiosa fraude literária.” O crítico literário e amigo Oliver Gogarty chamou-lhe “a mais colossal partida literária de sempre”. Apesar de tudo, o livro fora recentemente seleccionado pela Biblioteca Moderna para fazer parte da lista dos 100 maiores romances de língua inglesa do século XX.
Emily ficara na biblioteca durante a hora do almoço, para conseguir realizar a sua pesquisa. Comeu uma sanduíche de frango mas esqueceu-se completamente da sobremesa, de tão embrenhada que ficou no sacana do Joyce.
Tornava-se complicado elaborar uma sinopse simples do romance, mas básica e muito resumidamente, e nisso a maioria das análises estava de acordo, Finnegans Wake constituía o relato dos sonhos de um homem.
“Em primeiro lugar, é-nos relatada a queda de um personagem principal, chamado Finnegan e identificado como um obreiro de Dublin (ou, mais concretamente, representando todos os obreiros de todos os géneros ao longo da história mundial), caindo para a sua morte desde uma torre ou muro. Após a queda, dá-se uma luta entre outros trabalhadores, é derramado whiskey sobre o seu cadáver e Finnegan acorda novamente (Finnegan awakes).
Este novo Finnegan representa todos os homens e a sua queda a queda de toda a humanidade. Subsequentes vinhetas no primeiro capítulo apresentam-no como um guerreiro, um explorador invadindo um território ocupado pelos seus antepassados aborígenes e como a vítima de uma vingativa rainha pirata. No final do primeiro capítulo, Finnegan surge de novo caído no chão e uma nova versão do personagem encontra-se agora a chegar à Baía de Dublin para tomar o lugar do outro: Humphrey Chimpden Earwicker, cujas iniciais HCE ("Here Comes Everybody") se vão repetindo ao longo de todo o livro.
O progresso do romance está longe de ser simples, uma vez que se inspira em mitologias, teologias, mistérios, filosofias, histórias, sociologias, astrologias, outras ficções, alquimia, cor, natureza, sexualidade, desenvolvimento humano e dúzias de línguas diferentes.
O livro termina com a última frase incompleta, deixando ao mesmo tempo a possibilidade de o leitor a completar com a sua própria vida, ou de regressar ao início do livro e completá-la com a frase de abertura, num eterno ciclo.”
Emily descobriu que Joyce passara os últimos dezassete anos da sua vida a fazer experiências com a linguagem e a escrita. Dedicara-se a fazer e refazer Finnegans Wake utilizando elementos léxicos, sintácticos e gráficos de diversas línguas. O resultado fora uma linguagem similar a uma possível linguagem que poderíamos ter enquanto sonhamos, não inteiramente consciente ou formada, impregnada de infinitas camadas de significados.
Nesse sentido, o livro poderia ser visto como um abandono das convenções da mente acordada, para incorporar o trabalho realizado pela mente adormecida. Ao sonharmos, as imagens e as tramas não são distintas – elas mudam e aglomeram-se e reformam-se constantemente. Joyce captou esta qualidade proteinária dos sonhos, através de complexos jogos de palavras e significados contraditórios. E, embora tenha escrito basicamente em inglês, universalizou o “sonho” incorporando-lhe dúzias de outras línguas e dialectos.
Esta utilização das línguas do mundo fazia parte do objectivo de abarcar o conhecimento total da humanidade no livro. O romance estava cheio de alusões a mitos, história e arte mundiais, sem esquecer outros géneros de cultura mais popular como canções, rimas infantis e outros recursos.
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Quando acabou, foi surpreendida pela respiração pesada e quente do vetusto professor de Literatura, inclinado por trás de si, sobre o seu ombro, aparentemente nessa posição já há algum tempo, porque franzia o sobrolho e segurava o seu cachimbo com o polegar e o indicador, numa atitude de concentração perante a página que ela tinha aberto no programa de busca da internet, e que enchia o écran do velho computador utilizado pelos funcionários da biblioteca.
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(34) Ficções - A Biblioteca de Babel - Jorge Luís Borges
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