quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 24 (cont.)

Capítulo 7. MY SIN, MY SOUL
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Era como se ela constituisse uma peça que praticasse todas as noites e que, pela repetição do exercício, começasse a desvendar-lhe segredos insuspeitos até há poucas semanas atrás, mas que agora se tornavam cada vez mais claros. Apesar de acreditar em Deus, não era de forma alguma religioso e, no entanto, a sombra de uma ideia começara a imiscuir-se lentamente nas profundidades do seu interior, sem que ele tivesse reparado e agora essa ideia instalara-se de repente no decorrer dos seus dias solitários, sobretudo antes de adormecer. Era com ela que se debatia nesse preciso momento, querendo afastá-la mas ao mesmo tempo sem fazer um esforço muito grande para que isso acontecesse.
Emily era na realidade uma emanação espiritual dos seus pais, enviada para cumprir a tradição familiar e permitir-lhe criar e interpretar a sinfonia humana que era a sua voz. Mas esta sinfonia muito particular era composta por intrincadas combinações de palavras e gestos e expressões e vivências contidas nessa voz, e não só. Ele também fazia parte dela. Ia fazendo parte, como se constituísse uma daquelas variações que os músicos talentosos gostam de realizar sobre as obras dos seus compositores favoritos. Emily era a sinfonia em bruto e ele era o intérprete que, trazendo os seus gestos, as suas palavras, as suas emoções e a sua vida, a enriquecia e criava uma nova e pessoal variação de Emily.
Soltou um sorriso desdenhoso na escuridão, sem conseguir perceber a origem de ideia tão absurda, nem querer sequer aprofundá-la demasiado. Mas por que raio estaria a perder tempo com aquela pindérica, quando não tencionava prolongar a sua estadia neste mundo mais do que uns quantos meses, se tanto? Para quê dar-se ao trabalho de lhe passar ridículos trabalhos de casa e fazê-la perder tempo com pesquisas sobre autores que, de qualquer das formas, seriam sempre demasiado eruditos e complicados para as suas capacidades intelectuais?
Mas antes sequer de ter tido tempo para deixar estes pensamentos fermentarem alguns momentos no seu cérebro, a resposta emergiu clara e límpida na sua mente, tal e qual a outra ideia absurda, paralisando-o com a sua absoluta e quase matemática inevitabilidade – não poderia morrer sem terminar a sua sinfonia e, sendo filho de quem era, não poderia terminá-la sem que tivesse dispendido todos os esforços para torná-la o mais próximo possível da perfeição. E qualquer tentativa para racionalizar esta conclusão tornava-se completamente inútil. A ideia fazia parte daquele estranho grupo de ideias que parecem moldadas em pedra para a eternidade por uma mente superior infinitamente mais sábia e omnipotente.
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"De manhã, ao romper do dia, por entre as pálpebras entreabertas viu-o levantar-se, apertar ao corpo a correia de couro e abrir a porta. Ali, parou. Queria e não queria partir. Voltou-se, olhou a cama, deu um passo hesitante, aproximou-se mais e inclinou-se. No quarto ainda estava escuro, e ele debruçou-se como se quisesse ver e tocar a mulher. Tinha a mão direita na cintura, e a esquerda sobre o queixo e a boca.
A mulher, deitada, imóvel, com os cabelos a ocultarem-lhe os seios nus, olhava por entre os cílios e todo o seu corpo tremia.
Os lábios do jovem moveram-se:
- Maria …
Mas, ao ouvir a sua própria voz, foi tomado pelo pavor; de um salto atingiu novamente a porta, atravessou o pátio a correr, puxou o ferrolho da porta da rua …
Então, Maria Madalena sentou-se bruscamente no leito, atirou para um lado os lençóis e começou a chorar." (37)

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No dia seguinte, Clara surpreendeu-o com uma entrada repentina na biblioteca, a meio da tarde, pouco depois do almoço. E, como de costume, torneou o assunto:
“Não sabia que a biblioteca desta casa agora passou a ser pública.”
“Ah, sim. Emprestei-lhe uns livros. Algum problema?”
“Não, nenhum, se não pretendes reavê-los.”
“Clara, deixa-te de histerias. Confio nela. E está avisada. Ela não é estúpida e podes ficar descansada porque, de qualquer das maneiras, o seu cérebrozinho nem sequer consegue atingir o valor do que está a levar emprestado.”
“Primeiras edições, algumas delas autografadas? Duvido que o teu novo animal de estimação seja assim tão ingénuo.”
Soltou uma gargalhada.
“Animal de estimação? Ela é assim tão bonita, Clara?”
Silêncio repentino. Percebeu que ela tinha aberto a boca para dizer qualquer coisa, mas que a fechara novamente. Também sabia que ela estava morta por perceber se a curiosidade dele era mais forte do que o seu orgulho, mas que nunca lhe iria oferecer essa carta de bandeja.
“Já percebi que sim.”, sorriu, “Só não consigo decidir-me quanto à cor dos olhos. Azuis como os teus, ou castanhos como os meus?”
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(37) A Última Tentação de Cristo - Nikos Kazantzakis

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