quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 19 (cont.)

Capítulo 6. AND ON MY LEANING SHOULDER SHE LAID HER SNOW-WHITE HAND
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"O Dr. Hoffman tinha destruído o tempo, e fazia jogos com os objectos pelos quais nós regulávamos o tempo. Olhava muitas vezes de fugida para o meu relógio, para só deparar com os ponteiros substituídos por rigorosos tufos de hera ou madressilva que, enquanto eu os fixava, avançavam serpeantes até cobrir e assim esconder todo o mostrador. Brincadeiras com relógios de pulso e de parede eram expedientes favoritos seus, pois desse modo bem nos convencia e atirava à cara como tinhamos deixado de ter em comum uma estrutura temporal." (29)
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Não lhe mentira. Ela era de facto o seu instrumento. Era curioso como a vida tomava sempre um sentido muito próprio, nunca semelhante àquele que lhe queremos dar, mas nem por isso desprovido de uma lógica desarmante e simples.
Nunca tivera ouvido nenhum para a música, apesar de os pais carregarem esse gene precioso no ADN conjunto, e agora dependia quase exclusivamente desse sentido para sobreviver.
Nunca aprendera a tocar nenhum instrumento, apesar de os pais respirarem música. E agora ali estava ele com um instrumento precioso nas mãos, destinado a ser afinado por si até à perfeição.
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Ao longo dos dias dispusera-se, lentamente e com uma paciência que desconhecia ter, à empolgante tarefa de lapidar um diamante em bruto. Emily era um brinquedo novo, um brinquedo para um homem habituado toda a vida a ter brinquedos caros e aborrecidos, dos quais se cansava rapidamente. Sem nada para fazer todo o dia, a não ser pensar nas mil e uma formas de se matar, Johann passou a esperar ansiosamente a chegada dela todos os finais de tarde. Durante o dia arquitectava planos para as sessões de leitura, escolhia mentalmente os livros que melhor se adequavam à voz dela e revia as sessões anteriores que gravava secretamente.
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"Down by the salley gardens my love and I did meet;
She passed the salley gardens with little snow-white feet.
She bid me take love easy, as the leaves grow on the tree;
But I, being young and foolish, with her would not agree.
In a field by the river my love and I did stand,
And on my leaning shoulder she laid her snow-white hand.
She bid me take life easy, as the grass grows on the weirs;
But I was young and foolish, and now am full of tears." (30)
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Ouvia-as até à exaustão. Dias havia que adormecia embalado pela sua voz lamurienta mas que, a pouco e pouco, ia ganhando uma tonalidade cada vez mais forte e segura, como um belo botão de flor que desabrochasse.
Uma noite surpreendeu-se a procurar debaixo do cobertor com a mão febril o seu próprio sexo, enquanto a ouvia nos auriculares. Desligou subitamente o botão e permaneceu imóvel durante muito tempo, assustado consigo próprio. Depois do acidente não voltara sequer a pensar em sexo daquela maneira. Claro que pensara e desesperara com a sua incapacidade aparentemente definitiva. Mas nunca chegara ao ponto do desejo, como naquele momento.
Percebeu que ela o fazia esquecer-se de querer morrer. Aquela pindérica e a sua voz surpreendentemente bela. Aquela pindérica que o chamara de aleijadinho e depois tivera o descaramento de lhe vir pedir desculpa, como se quisesse obrigá-lo a entrar num qualquer drama barato de culpa e arrependimento. Claro que não lhe dera a satisfação da resposta e ela percebera imediatamente e calara a sua linda boquinha.
Por vezes, durante as sessões, surpreendia-se a tentar imaginá-la fisicamente, os seus movimentos enquanto lia, a forma como a sua boca se abria e fechava, o ângulo da sua cabeça. Certamente penderia para um dos lados, como todos os estúpidos que vêem a vida através de óculos de lentes cor-de-rosa.
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"Perto do local onde morava vivia uma verdadeira camponesa, por quem anteriormente tinha tido uma certa inclinação, embora se acredite que ela nunca tenha sabido nem sequer considerado tal coisa. O seu nome era Aldonza Lorenzo e era esta quem ele considerava que podia habilitar-se à soberania do seu coração …" (31)
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Outras vezes distraía-se a tal ponto a tentar imaginar como é que ela bambolearia o corpo ao andar (não devia ter graça nenhuma) que tinha de lhe pedir que repetisse. A tontinha devia pensar que ele gostava particularmente desse trecho, porque o repetia com uma convicção patética.
Ouvia-a soltar-se dia após dia, ganhar confiança e voar sozinha. Descobriu que a paciência dava frutos, quando bem doseada, e congratulou-se com essa descoberta como um cientista se congratula com a inusitada conclusão de uma fórmula matemática, que subitamente combina todas as componentes de uma teoria de forma lógica e bela.
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(29) As Infernais Máquinas de Desejo do Doutor Hoffman - Angela Carter; (30) Down By The Salley Gardens - W. B. Yeats; (31) Don Quixote - Miguel de Cervantes Saavedra

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