sábado, 26 de janeiro de 2008

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 23 (cont.)

Capítulo 7. MY SIN, MY SOUL
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“Finnegans Wake, hmm?”
Ela encarou de novo o écran, sentindo-se apanhada em falta e ao mesmo tempo com uma secreta satisfação, enquanto ajeitava melhor no nariz os óculos da falsa miopia.
“Muito bem”, continuou ele, tossicalhando um pouco, “Vejo que o seu milionário gosta de rebeldes. Interessante ... Espero que consiga desenvencilhar-se, menina ...”
Emily endireitou-se e virou-se ligeiramente de lado, de forma a encará-lo de frente, sem ter que se levantar da cadeira:
“Russell. Emily.”
“Nome de escritora. Emily Brontë. Uma família prodigiosa, as irmãs Brontë. É quase pecado haver tanto talento numa só família.”
“Eu prefiro a Charlotte.”, apressou-se a dizer, tentando mudar o assunto do Joyce para um tema mais confortável.
“Claro ... suponho que leu a Jane Eyre ainda na puberdade ...”, e o anafado professor desviou os seus ridículos olhinhos azuis ampliados por lentes de fundo de garrafa para o seu decote, mas Emily não podia certificá-lo porque as lentes eram grossíssimas e as órbitas mais pareciam enormes moscas varejeiras azuis a esvoaçarem no vazio, dentro dum imaginário frasco de compota.
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“Lolita, luz da minha vida, fogo dos meus quadris. Meu pecado, minha alma. Lo-lee-ta: a ponta da minha língua realizando uma viagem de três passos através do palato para tocar, ao terceiro, nos dentes. Lo. Lee. Ta.
Ela era Lo, simples Lo, de manhã, com uma altura de 1 metro e meio, uma meia enfiada num pé. Ela era Lola de calças largas. Ela era Dolly na escola. Ela era Dolores nos seus cadernos pautados. Mas nos meus braços, ela era sempre Lolita." (35)
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“Já a li tantas vezes, professor Hesse, que quase a sei de cor.”, e, para sua própria surpresa, recitou o início do romance, que permanecera intacto na sua memória desde a última vez que o lera a John, há alguns meses atrás:
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“Não havia possibilidade alguma de dar um passeio naquele dia. Tinhamos vagueado, de facto, no pomar despido durante uma hora nessa manhã; mas desde o jantar (Mrs. Reed, quando não havia convidados, jantava cedo) que o frio inverno trouxera consigo nuvens tão sombrias e uma chuva tão penetrante, que qualquer actividade física no exterior estava agora fora de questão. (36)
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Mas a sua momentânea loucura literária pareceu não exercer qualquer efeito notório no semblante do professor, que se limitou a murmurar:
“Hmm ... agora Joyce, isso sim, Joyce é outra história completamente diferente. Não retirando, obviamente, todo o valor que um romance como Jane Eyre possui, digo-lhe que Joyce era e continua a ser um verdadeiro génio da literatura. Muito poucos se lhe aproximarão, com toda a certeza. Um verdadeiro génio, menina Sutherland. Presumo que o Wake não seja sua sugestão ... ainda é demasiado nova para poder compreender a sua importância.”
“Não ...”, Emily corou e baixou os olhos, procurando instintivamente com a mão o rato do computador e fazendo-o deslizar distraidamente sobre o tapete pousado em cima da mesa.
“Claro ... Já lhe deu uma vista de olhos? Vejo que está a pesquisar. Complicado ... um golpe de génio absolutamente sem precedentes e que continua a intrigar os círculos literários. Qual Tolkien, qual carapuça, mais as suas linguagens élficas.”, o professor sorriu e abanou a cabeça num gesto que tinha tanto de cómico como de absurdo, “Tolkien ao pé de Joyce é um aluno suficiente ... Mas enfim, é apenas uma opinião. Se quiser posso ajudá-la com o Joyce. Amanhã estou livre à hora do almoço para um café.”, levantou a sobrancelha esquerda e puxou mais uma fumaça intensa do seu cachimbo, enquanto as varejeiras azuis esvoaçaram enigmaticamente um pouco mais.
Emily não soube o que responder. Cruzou a perna para o outro lado e sorriu, sem saber que atitude tomar.
Ele continuou a sorrir, aguardando provavelmente uma resposta e depois rodopiou sobre si próprio e exclamou:
“Bom ... et voilá ... ali está a minha estagiária das 3. Foi um prazer, menina Sutherland. Até breve, espero.”
E bamboleou a sua gordura na diagonal, em direcção às mesas de estudo do lado direito da sala ampla, num passinho demasiado miúdo para tanto peso.
Emily suspirou, saiu do motor de busca e voltou às suas fichas.
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Naquela noite demorou a adormecer. Receava ser surpreendido de novo pelo sonho, algo que começava a tornar-se assustadoramente recorrente. As dores também o impediam de fechar os olhos com tranquilidade. E a rapariga martelava-lhe os pensamentos com insistência, como uma sinfonia persistente mas que se ia familiarizando a cada dia que passava.

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(35) Lolita - Vladimir Nabokov; (36) Jane Eyre – Charlotte Brontë

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